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historia da igreja primitiva n.9
historia da igreja primitiva n.9

    

                                             1. A vida de Irineu


  Muito pouco se conhece sobre a vida de Irineu.  Ele aparece pela primeira vez nos documentos antigos como o portador de uma carta dos confessores de Lião para a Igreja de Roma (bispo Eleutério, c.174-189), na época da perseguição do ano 177.  Esta carta pedia tolerância para os montanistas da Ásia Menor.  Em uma carta pessoal preservada por Eusébio de Cesaréia (Hist. eccl. 5,20,4-8), Irineu conta que tinha vívidas lembranças de Policarpo, o bispo de Esmirna, que fora discípulo do apóstolo João.  Isto era altamente significativo para Irineu, uma vez que Policarpo o colocava em contato com a era apostólica.  Irineu nasceu entre os anos 120 e 140 na Ásia Menor, provavelmente em Esmirna, onde ainda menino conheceu Policarpo, que foi martirizado aos 86 anos de idade no ano 155.

   Possivelmente por volta do ano 170, motivos familiares, pessoais ou missionários o levaram a Roma e depois para Lião (Lugdunum), no sul da Gália, atual França, onde ele se tornou um presbítero.  Hardy comenta que a Lião do segundo século era uma pequena Roma.  Uma cidade comercial às margens do Ródano e o centro do sistema romano de estradas da Gália, Lião era a sede de uma guarnição romana e a capital das três províncias gaulesas, sendo também o centro do culto imperial naquelas províncias.  Como Roma, Lião tinha uma grande população de língua grega entre a qual o cristianismo estava firmemente estabelecido.  A igreja de Lião tinha outros imigrantes de língua grega procedentes da Ásia Menor como Irineu.
  Após a sua missão em Roma no ano 177, Irineu retornou para Lião e descobriu que o bispo Potino havia sido martirizado, sendo então escolhido para ser o seu sucessor.  Como bispo de Lião, Irineu liderou a igreja daquela cidade, defendeu o seu rebanho contra as heresias e lutou pela paz e unidade da Igreja Cristã como um todo.  Esta última preocupação o levou a intervir na controvérsia pascal (c.190), quando Vítor, o bispo de Roma (189-198), ameaçou excomungar as igrejas da Ásia Menor por causa de um desentendimento referente à data da celebração da Páscoa.  Por esta razão, Eusébio declara que Irineu portou-se à altura do seu nome, porque provou ser um verdadeiro pacificador ou eurenopoios (Hist. eccl. 5,24,18).  Após este incidente, Irineu desapareceu completamente dos registros históricos e até mesmo o ano da sua morte é desconhecido.


2. Escritos


  Irineu escreveu uma longa série de obras, das quais somente duas sobrevivem: seu grande tratado A Detecção e Refutação da Falsamente Chamada Gnose (c. 185), geralmente conhecido como Contra as Heresias (Adversus Haereses), e uma obra de menor tamanho, Epideixis ou Demonstração da Pregação Apostólica, um tratado apologético descoberto em uma versão armênia em 1904 e publicado pela primeira vez em 1907.  Dos outros escritos de Irineu—vários tratados e cartas—temos apenas uns poucos fragmentos ou somente os títulos, os quais foram preservados por Eusébio de Cesaréia.
      A gigantesca Contras as Heresias consiste de cinco livros que no seu conjunto são maiores do que todo o corpo de literatura cristã existente naquela época.  O original grego perdeu-se quase inteiramente, mas existe uma tradução latina muito literal que foi publicada pela primeira vez por Erasmo de Roterdã em 1526, e também uma versão armênia dos dois últimos livros publicada em 1913.


  Como indica o título original, a obra é composta de duas partes.  A primeira parte (Livro I) trata da detecção ou descrição das doutrinas dos gnósticos, especialmente dos discípulos de Ptolomeu, que era discípulo de Valentino.  O autor conclui triunfantemente: “Meramente descrever tais doutrinas é o mesmo que refutá-las” (Adv. haer. 1,31,3-4).  A segunda parte, a “refutação”, compreende os quatro livros restantes.  No Livro II, Irineu refuta a gnose dos valentinianos e dos marcionitas com base na razão.  Ele ataca as doutrinas do pleroma e dos eons com uma lógica implacável, mas não procura elaborar uma alternativa especulativa.  Na realidade, o Livro II desenvolve o que havia ficado incompleto no primeiro livro.
      Os últimos três livros são devotados à refutação do gnosticismo com base nas Escrituras.  Aqui Irineu trata de muito temas mais amplos e elabora os princípios basilares da teologia cristã.  O Livro III coloca o fundamento da doutrina cristã nas Escrituras e na tradição e elabora com detalhes os seus pontos essenciais—a unidade de Deus e a redenção por meio de Cristo.  O Livro IV defende contra Márcion a unidade das duas alianças e o Livro V continua a discussão acerca da redenção e daí passa para as últimas coisas e a esperança do mundo por vir.  Neste livro, Irineu discorre longamente sobre a ressurreição do corpo, que era negada por todos os gnósticos.
      Contra as Heresias é a primeira grande obra cristã no segundo nível da teologia, a primeira tentativa abrangente de declarar o que é realmente o cristianismo.  Embora muito menor, a Epideixis ou Demonstração também é significativa, uma vez que parece representar o ensino de Irineu aos catecúmenos.  Ela segue a ordem da fórmula batismal, aduzindo provas escriturísticas para a crença no Pai, Filho e Espírito Santo.


3. Os gnósticos


  Bengt Hägglund observa com propriedade que “foi o idealismo gnóstico, com a sua negação da criação, que compeliu os pais da Igreja a abordarem com tantos detalhes as doutrinas de Deus e da criação, juntamente com o problema do homem, a encarnação e a ressurreição do corpo”.  É bem sabido que aquilo que chamado de gnosticismo era um fenômeno muito complexo que assumiu uma grande variedade de configurações.  De um lado do espectro havia manifestações de uma gnose cristã, das quais a mais destacada foi o marcionismo.  Por outro lado, os gnósticos do tipo valentiniano dificilmente poderiam ser considerados como cristãos.  Eles eram perigosamente enganosos uma vez que utilizavam as mesmas Escrituras e a mesma linguagem que os cristãos, mas com um sentido radicalmente diferente.  Irineu chama atenção para este fato através da interessante analogia da imagem de um rei e de sua transformação na imagem de um animal (Adv. haer. 1,8,1).
  Todos os sistemas gnósticos tinham em comum a opinião de que o cristianismo ortodoxo, com o seu “credo” claro e objetivo, era demasiado simples.  Eles professavam no mínimo ter uma resposta mais complexa para o enigma do universo.  Filosoficamente, as diferentes correntes do gnosticismo também tinham em comum a negação da unidade de Deus conforme apresentada nas Escrituras e ensinada pela Igreja Primitiva.  Na sua forma mais simples, eles negavam a identificação do Deus do Velho Testamento, Iavé, com o Deus de Jesus Cristo.
  Norris pondera que o contexto da “gnose” ou “verdade mais profunda” do gnosticismo “tinha a ver com a questão religiosa fundamental da origem, natureza e destino da alma”.  Esta preocupação levava a um entendimento do Ser Divino e da sua relação com o mundo que distorcia por completo o ensino cristão tradicional acerca de Deus.  Deste erro fundamental, decorriam todas as outras idéias gnósticas errôneas nas diferentes áreas da teologia cristã.
    Na concepção de Irineu, a gnose era pura e simplesmente uma contradição do cristianismo, uma negação das suas doutrinas capitais.  Como sabemos, Irineu não estava interessado no gnosticismo como um fenômeno geral, mas em um tipo particular de ensino que ele havia encontrado em Lião — a doutrina de Ptolomeu, “um rebento da doutrina de Valentino” (Adv. haer. 1, prefácio, 2).  Como tal, a gnose ptolomaica era “um sistema de complexidade fantasmagórica, cujo propósito era expor a verdade acerca da identidade do gnóstico em sua natureza mais íntima”.
      Conforme a descrição de Irineu, o traço essencial da gnose ptolomaica era um dualismo consistente.  Os gnósticos não reconheciam um, e sim dois mundos.  Havia o Pleroma ou Plenitude, uma sociedade de seres divinos ou Eons, em cujo ápice ficava a realidade última desconhecida e incognoscível, o Abismo.  Fora e abaixo do Pleroma estava o corrupto mundo material, o produto indesejado de uma desordem temporária na vida do Pleroma.  O mundo foi produzido através de um processo complexo que gerou os seus três elementos constitutivos: matéria corpórea, alma e espírito.  Os espíritos dos gnósticos estavam destinados a retornarem finalmente para o seu lar no Pleroma.
      O artífice do mundo visível é uma entidade angélica, o Demiurgo, uma simples alma que ignora qualquer vida superior à sua própria.  Este é o Deus dos judeus e o Jesus humano e terreno é o seu Messias.  No entanto, existe uma dimensão oculta da verdade nos ensinos de Jesus que revela o próprio Pleroma.  Isto acontece porque um eon divino, o Salvador, veio sobre Jesus no seu batismo e permaneceu com ele até o momento do seu sofrimento e morte.  Todo aquele que lê as palavras de Cristo em sintonia com o seu significado interior, e não com o seu sentido literal, encontra nas mesmas não as palavras do Messias judeu, mas o ensino do próprio Salvador, que traz o conhecimento da vida divina do Pleroma.
      Obviamente, a conseqüência deste sistema era o abandono completo do entendimento cristão tradicional acerca do Ser Divino e do seu relacionamento com o mundo.  Conforme Norris observa: “Na sua ansiedade de segregar a matéria do espírito, o mal do bem, os gnósticos dissolveram ao mesmo tempo a unidade do mundo e a unidade de Deus”. Por sua vez, este dualismo gnóstico destruía a integridade da teologia da história que estava no âmago da pregação cristã.  A oposição entre o Velho e o Novo Testamento, entre Iavé e o Salvador manifestado em Jesus, levava a uma dissolução da unidade da história da salvação, a história da relação de Deus com a humanidade apresentada nos escritos sagrados da Igreja.


4. O argumento de Irineu


      A argumentação de Irineu contra a heresia gnóstica foi tríplice: filosófica, histórica e exegética.  Primeiramente, ele chamou a atenção para o absurdo lógico do sistema gnóstico, especialmente na sua idéia de Deus.  Particularmente, no segundo livro deAdversus Haereses, ele procura expor “as inconsistências de uma concepção que proclama a infinidade e a supremacia do Deus absoluto e ao mesmo tempo nega a sua responsabilidade pelo mundo material.  A forma racional e abstrata deste argumento parece contradizer a afirmação anterior de que Irineu nutria suspeitas com relação às especulações filosóficas.  Sabemos que em vários pontos de suas obras a sua hostilidade para com a filosofia é bastante explícita (Adv. haer. 2,26,1).  Todavia, o fato é que Irineu não poderia deixar de fazer especulações e de utilizar idéias religiosas e filosóficas que estavam profundamente incrustadas no seu contexto cultural (judaísmo helenístico, platonismo, etc.).
  Em segundo lugar, Irineu refutou a alegação dos gnósticos de que eles ensinavam a verdadeira doutrina de Cristo e dos apóstolos.  Nesta tarefa, Irineu teve de estabelecer as credenciais históricas da sua própria posição, ou seja, a harmonia existente entre aquela doutrina e o seu cristianismo anti-gnóstico.  Ele apelou para os escritos sagrados que constituíam o fundamento dos ensinos da Igreja (o Velho Testamento na versão da Septuaginta e os livros que mais tarde seriam conhecidos como o Novo Testamento) e insistiu em que estas fontes escritas eram o único padrão final do autêntico ensinamento cristão.  Além disso, ele apelou ao princípio da tradição: o critério para o entendimento das Escrituras é encontrado na doutrina abertamente proclamada (“a regra da verdade”) por aquelas igrejas cujos líderes sucederam numa ordem publicamente reconhecida o ofício docente dos apóstolos.  A “verdade” que, de acordo com Irineu, era a “regra” (kanon), consistia da ordem da salvação revelada na Bíblia, proclamada pela Igreja e sintetizada na confissão batismal.
   O terceiro nível do argumento de Irineu foi exegético.  Ele tomou os ensinos dos profetas, de Cristo e dos apóstolos e mostrou que eles se opunham frontalmente à doutrina dos adversários gnósticos.  No decurso da sua análise exegética Irineu desenvolveu o que considerava a alternativa ortodoxa ao gnosticismo.  Este empreendimento o levou a utilizar idéias exegéticas e teológicas que havia herdado de escritores cristãos anteriores, especialmente dos apologistas.  Desse modo, a elaboração feita por Irineu de uma alternativa ao gnosticismo o levou a dialogar com a cosmologia teológica grega, cujo início consciente pode ser visto nas apologias de Justino.  Além disso, à medida que procurava mostrar a continuidade entre os eventos do Velho Testamento e os do Novo Testamento, Irineu utilizou e desenvolveu a chamada exegese tipológica (Adv. haer. 4,20,7 - 25,3).


5. A doutrina de Deus


      Por volta de meados do segundo século começou a surgir nos círculos cristãos uma crescente elaboração de formulações confessionais, catequéticas e batismais, bem como o esforço de falar sobre as implicações mais amplas das mesmas, em nível intelectual.  Estas elaborações marcam a transição de uma teologia primária para uma teologia secundária ou de segundo nível, em resposta à necessidade de explicar o que acontecia quando alguém era batizado, ou seja, qual o significado do novo relacionamento estabelecido com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.  Mais especificamente, a necessidade de interpretar as fórmulas catequéticas, confessionais e batismais em face dos escritos heréticos foi o contexto no qual começou a surgir a busca intelectual da doutrina da trindade.  Em Irineu, encontramos a primeira elaboração extensa das fórmulas batismais triádicas, juntamente com as suas implicações, como uma resposta direta ao desafio lançado pelo gnosticismo à concepção cristã de Deus.
      Irineu inicia com a regra da verdade, a “tradição” ou ensino transmitido pelos apóstolos e fielmente preservado pela igreja.  A partir daí ele desenvolve o seu entendimento acerca da unidade de Deus e da realidade da tríade divina: Pai, Filho e Espírito Santo.  Não havia um credo em Lião, mas uma linguagem triádica sobre o que significava ser um cristão.  Evidentemente, ainda não havia uma doutrina da trindade.  Apesar das suas afirmações ao contrário, Irineu demonstrou ter uma mente altamente criativa ao deduzir as implicações das fórmulas tradicionais para muitas áreas do pensamento cristão, particularmente para a idéia de Deus.


5.1 A Regra da Verdade


      Como foi visto acima, para Irineu a “regra da verdade” era o sistema de fé derivado dos apóstolos e dos seus discípulos e compartilhado pela Igreja universal.  Com isto, ele não estava se referindo a um único credo universalmente aceito ou a qualquer tipo de fórmula como tal, mas ao conteúdo doutrinário da fé cristã transmitida na Igreja “católica”.  Em várias passagens, Irineu faz alusões a esta regra da verdade e até mesmo reproduz sínteses da mesma, quase invariavelmente em termos triádicos e em conexão com o batismo.
      Existem vários exemplos na Epideixis, como este encontrado no capítulo 3: “Antes de tudo, precisamos ter em mente que recebemos o batismo para a remissão dos pecados em nome de Deus o Pai, e em nome de Jesus Cristo o Filho de Deus, que se encarnou, morreu e ressuscitou, e no Espírito Santo de Deus”.  Existem outras referências nos capítulos 7 e 100.  A partir desta linguagem, Kelly conclui que Irineu conhecia uma série de perguntas batismais que seriam mais ou menos assim: “Você crê em Deus Pai?  Você crê em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se encarnou, morreu e ressurgiu?  Você crê no Espírito Santo de Deus?”.  A Epideixis tem, no seu capítulo 6, uma exposição detalhada dos três pontos, novamente em um contexto relacionado com o batismo, o que dá uma boa idéia da instrução catequética pré-batismal fornecida naquela época.
    Os sumários “credais” mais importantes encontrados em Contra as Heresias são também confissões com três cláusulas.  A passagem mais notável é aquela encontrada em 1,10,1:      A Igreja, embora dispersa por todo o mundo, até aos confins da terra, recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos esta fé: [Ela crê] em um Deus, o Pai Todo-poderoso, Criador dos céus, da terra, do mar e de todas as coisas que neles estão; e em um Cristo Jesus, o Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação; e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus. . .
  Outra referência importante é aquela encontrada em 4,33,7, que parece ter sido deliberadamente baseada em 1 Cor 8:6:
Ele [o verdadeiro discípulo espiritual] tem plena fé em um Deus Todo-poderoso, de quem são todas as coisas; e no Filho de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, por quem são todas as coisas, e nas dispensações referentes a Ele, por meio das quais o Filho de Deus se fez homem; e uma fé firme no Espírito de Deus, que nos proporciona o conhecimento da verdade, e tem apresentado as dispensações do Pai e do Filho, em virtude das quais Ele habita com cada geração dos homens, de acordo com a vontade do Pai.      Também existem vários exemplos de fórmulas com dois artigos (Adv. haer. 3,1,2; 3,42; 3,16,6; etc.).


  Kelly pondera que, surpreendentemente, é tênue a influência de motivos anti-heréticos nestas várias declarações.  Talvez isto seja verdade quanto às declarações em si mesmas, mas certamente os seus contextos não deixam dúvida quanto à sua intenção polêmica.  É precisamente a partir dessas afirmações da regra da verdade que Irineu deriva os seus principais argumentos contra as noções gnósticas acerca de Deus e do seu relacionamento com a ordem criada.


5.2 Deus, Uno e Criador


      Com Irineu, a afirmação de Deus como uno e criador assumiu importância especial, uma vez que a sua tarefa era refutar a teoria gnóstica de uma hierarquia de eons que desciam de um Deus Supremo incognoscível e o seu corolário de uma grande distância entre ele e o criador ou Demiurgo.  Um texto torna clara esta posição: “O primeiro artigo de nossa fé”, explica Irineu, “é Deus o Pai, incriado, não-gerado, invisível, Divindade una e única, criador do universo” (Dem. 6; ver também Adv. haer. 2,1,1; 2,9,1; 2,16,3).  Deus exerce a Sua atividade criadora através da Sua Palavra e da Sua Sabedoria ou Espírito (2,30,9).  Ele criou ex nihilo (2,10,4), sendo esta provavelmente a primeira declaração cristã explícita da criação de todas as coisas a partir do nada.  Para fundamentar estes princípios Irineu apela, além das Escrituras, à razão natural (Dem. 4).
      Deus relaciona-se com o mundo não somente através da criação, mas também através da redenção.  O Deus da salvação é o mesmo Deus da criação (Adv. haer. 4,6,2; 4,20,2), ou seja, não há senão um só Deus, que tanto cria como redime.  O ensino gnóstico acerca de dois deuses era uma blasfêmia contra o Criador.  Ele também implicava na impossibilidade da salvação, porque se Deus não criou, a criação também não poderia ser redimida.  Se Deus não foi o criador, ele não iria salvar a criação.  Todavia, este é o alvo de toda a ordem da criação.  Para os gnósticos, a salvação consistia em serem libertos da criação, do mundo material; para Irineu, no entanto, a salvação significava que a própria criação seria restaurada ao seu estado original e alcançaria o seu destino conferido por Deus.
  A visão gnóstica de Deus não somente punha em dúvida o princípio bíblico essencial do monoteísmo, mas impunha uma limitação seja ao poder ou à bondade de Deus.  Contra estas concepções, Irineu afirma que Deus é um e único em sua majestade e bondade, e supremo no seu poder.  Os termos que ele emprega são tomados, curiosamente, do judaísmo helenístico e da teologia do médio platonismo.  Ele escreve que Deus é incriado, incompreensível, sem figura ou forma, impassível e incapaz de erro (Adv. haer. 4,38,2-3).  Ele é estático, imutável (2,34,2), auto-contido e auto-suficiente (2,1,5; 4,16,4).  Deus é, como Platão observou corretamente, incapaz de ser declarado e, portanto, como Irineu conclui de maneira não platônica, ele é conhecido somente na medida em que se dá a conhecer a si mesmo.  Ele é simples, não-composto e totalmente diferente das coisas criadas (2,13,3).
  Irineu também repete constantemente que Deus é sem limites.  O verdadeiro Deus é ele mesmo o Pleroma, a “Plenitude” de todas as coisas.  Como tal, ele não é contido por nada e todavia contém tudo o que existe (2,30,9; 2,1,1).  Ele é ilimitado tanto no seu poder como na sua presença: não existe nada à parte dele e nada que não esteja sujeito a ele.  Na sua simplicidade e eternidade não-originadas, Deus é o contexto imensurável de todo o ser, bem como a sua fonte—diferente de todas as criaturas, porém não separado de nenhuma delas.
    Norris vê aqui uma diferença significativa entre Irineu e Justino. Enquanto que Justino tende a acentuar a transcendência radical do Criador sobre a sua criação, a agenda de Irineu requer uma maneira de afirmar a majestade transcendente de Deus que não pareça excluí-lo do mundo.  A noção do caráter ilimitado de Deus não significa meramente que Deus não pode ser medido, mas também que nada impõe um limite ao seu poder e à sua presença.  Assim, o que torna Deus diferente de toda criatura—a sua simplicidade eterna e não-gerada—é precisamente o que lhe assegura um relacionamento direto e íntimo com toda criatura.


5.3 A Divina Tríade

     Da mesma maneira que os ensinos gnósticos levam Irineu a enfatizar a unidade de Deus, a regra da verdade ligada ao batismo o faz refletir sobre as distinções do Ser Divino: Pai, Filho e Espírito Santo.  Irineu mostra a dificuldade de se reconciliar uma só realidade divina com tais distinções, isto é, como afirmar a unidade de Deus e ao mesmo tempo preservar a Tríade.  No seu pensamento, as próprias relações das “pessoas” da Tríade permanecem obscuras.  Ele trata das implicações da fórmula, mas se recusa a ir além disso; esta tarefa seria deixada para teólogos posteriores.
  Como foi visto anteriormente, Irineu começa a sua exposição do Ser Divino a partir dos três artigos fundamentais do símbolo batismal.  Uma passagem essencial éDemonstração .  Lebreton observa apropriadamente que “a fim de julgar as heresias [Irineu] leva-as a esta regra fundamental e demonstra a oposição das mesmas aos três artigos do símbolo”.  Por sua vez, Kelly argumenta que Irineu vai além dos apologistas em dois aspectos, a saber, na sua compreensão mais firme e afirmação mais explícita da noção de “economia” e no seu reconhecimento muito mais pleno do lugar do Espírito no esquema triádico.
   A divina Tríade é invocada para mostrar com mais detalhes como Deus se relaciona com o mundo não somente na criação, mas na redenção.  Irineu se acerca de Deus a partir de duas direções, vendo-o tanto como ele existe no seu ser intrínseco e também como ele se manifesta na economia, o processo ordenado da sua automanifestação.  Do primeiro ponto de vista, Deus é o Pai de todas as coisas, inefavelmente um, e todavia contendo em si mesmo desde toda a eternidade a sua Palavra e a sua Sabedoria.  Porém, ao dar-se a conhecer ou pôr-se em atividade na criação e na redenção, Deus manifesta esta Palavra e esta Sabedoria; como o Filho e o Espírito, elas são as suas “mãos”, os veículos ou formas da sua auto-revelação.
     Norris pondera que a nota característica do ensino de Irineu acerca de Deus pode ser vista na sua luta com a doutrina do Logos herdada dos apologistas.  Ele a utiliza, mas um tanto a contra-gosto e com cuidadosas qualificações.  A Palavra ou o Verbo é visto como o Mediador.  O Pai está “acima de tudo”, enquanto que a Palavra é “através de todas as coisas”.  O Pai está de algum modo “fora” do mundo e a Palavra parece um poder intermediário através de quem Deus se relaciona com o mundo e atua nele.  A Palavra é o Mediador da revelação: o Deus invisível e incompreensível não é dado a conhecer diretamente, mas através da sua Palavra.
  Irineu não fica inteiramente satisfeito com esta linguagem.  A sua oposição ao gnosticismo o torna avesso a qualquer sugestão de que existe mais de uma substância divina ou de que Deus está de algum modo separado do seu mundo.  Assim, ele repudia todas as tentativas de se explorar o processo pelo qual o Logos/Verbo foi gerado (2,28,4-6; 2,13,8).  Tal linguagem parece sugerir que o Logos é um estado intermediário entre Deus e a criação e parece implicar em distinções de grau dentro da Divindade.  Ao mesmo tempo, o Verbo ou Filho é corretamente chamado “Deus” (Dem. 47); ele é distinto de tudo o que é gerado e coexiste com o Pai desde toda a eternidade (2,30,9; 3,18,1; 4,20,1).
      Com o Filho Irineu associou intimamente o Espírito, argumentando que, se Deus era racional e portanto tinha o seu Logos, ele também era espiritual e assim tinha o seu Espírito (Dem. 5).  Nisto, Irineu demonstrou ser um seguidor de Teófilo de Antioquia e não de Justino, identificando o Espírito, não o Verbo, com a Sabedoria divina, e assim fortalecendo a sua doutrina do Espírito Santo com uma base bíblica segura (Sl 33.6; Pv 3.19; 8.22-36; etc.).  O Espírito é plenamente divino, ainda que em nenhum lugar Irineu o designe expressamente como Deus, pois ele é o Espírito de Deus, continuamente brotando do seu ser (5,12,2).
      Irineu também é bastante peculiar e criativo no seu ensino acerca do Verbo e da Sabedoria, o Filho e o Espírito, como “as duas mãos de Deus” (4,20,1), uma imagem que faz lembrar Jó 10:8a e Salmo 119:73.  Esta é outra maneira pela qual ele acentua a doutrina de um Deus imediatamente presente e ativo.  É o próprio Deus Supremo que está empenhado numa atividade criadora neste mundo.  Lawson observa que este ensino denota uma “ação direta”, em contraste com os anjos intermediários dos sistemas gnósticos (Adv. haer. 4,7,4).  Irineu também fala do “Pai que planeja tudo bem e dá as suas ordens, o Filho que as executa e realiza a obra de criação, e o Espírito que nutre e faz crescer. . .” (4,38,3).  Vê-se aqui um esforço de preservar a igualdade do status divino entre o Filho e o Espírito exigida pela fórmula triádica.  Assim, “as duas mãos de Deus” é uma expressão do caráter imediato da criação, não do seu caráter mediato.
      O Verbo e o Espírito colaboram na obra de criação e direção (4,20,2; Dem. 5) e também nas atividades de inspiração e revelação.  O Verbo revela o Pai (4,6,3; 4,6,6).  Na encarnação o Verbo, até então invisível aos olhos humanos, tornou-se visível e manifestou pela primeira vez aquela imagem de Deus a cuja semelhança o ser humano foi originalmente criado (5,16,2).  O Espírito atuou nos profetas e nos crentes da antigüidade; somente ele capacita as pessoas a conhecerem o Filho (Dem. 6,7).  A santificação é inteiramente obra do Espírito.
      Lawson acredita que o tratamento mais profundo e consistente da natureza de Deus feito por Irineu está em Adv. haer. 4,20,1-12, um capítulo que inicia com a celebração do amor de Deus.  No centro da religião de Irineu, está o conceito do amor auto-comunicativo de Deus.  Porque ele ama, Deus livremente dá de si mesmo na criação, nos profetas e no Filho do seu amor.

      A visão de Irineu acerca da Divindade é a mais completa e também a mais explicitamente “trinitária” que se pode encontrar antes de Tertuliano. Seus característicos do segundo século destacam-se claramente, particularmente em sua apresentação da Tríade através da imagem, não de três pessoas co-iguais (conceito pós-niceno), mas de um único personagem, o Pai, que é a própria Deidade, com a sua mente ou racionalidade e a sua sabedoria.
      Confrontado com as extravagâncias gnósticas, Irineu permaneceu extremamente avesso à investigação das profundezas ontológicas da Tríade e das relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.  O fato importante destacado pela fórmula batismal e acentuado por Irineu é que existem distinções reais no ser imanente do Pai único e indivisível e que, embora somente tenham sido plenamente manifestas na “economia”, elas realmente estavam presentes desde toda a eternidade.
      A  teologia de Irineu é um tributo à sua fé no Deus triúno, à sua capacidade intelectual e ao seu compromisso com a Igreja.  É também uma evidência eloqüente da força interior e da crescente influência do cristianismo primitivo, que teve no bispo de Lião um dos seus mais notáveis e dignos representantes.  Nos dias atuais, em que diversos sistemas neo-gnósticos e pseudocristãos continuam a questionar a fé cristã histórica, o exemplo de Irineu nos incentiva a aprofundar a nossa reflexão teológica à luz das Escrituras e da experiência da Igreja.

 

 Fontes Portal Makenze 

 

                              QUEM ERAM OS PRIMEIROS CRISTÃOS 

Ainda recordação que o professor de inglês na universidade tratava de impressionar-me com a importância de definir os termos que usava em minhas composições. Prestei-lhe pouco atendimento naquele tempo, mas me dei conta da importância de seu conselho quando comecei a falar dos primeiros cristãos. Sempre alguém me fazia a pergunta: “Que quer dizer você quando se refere a ‘os primeiros cristãos’?”Permita-me, pois, definir este termo. Quando falo de “os primeiros cristãos”, estou-me referindo aos cristãos que viviam entre os anos 90 e 199 d.C.

 

                        O apóstolo João estava vivo ao princípio desta época.

 

 Nesta primeira geração de primeiros cristãos, tinha gente que tinha conhecido pessoalmente a algum dos apóstolos. Tinham recebido instrução deles. Policarpo serve como exemplo de tais pessoas. O foi instruído pelo apóstolo João. Esta época terminou com um homem que foi ensinado por Policarpo: Irineu. Assim tinha um só elo humano entre ele e os apóstolos. Ao dizer “cristianismo primitivo”, estou-me referindo às crença se práticas da comunidade de primeiros cristãos, em todo mundo, que mantinham os vínculos de companheirismo entre si. Não falo das crenças e práticas dos que eram chamados hereges. Usando a figura da parábola em Mateus 13.24-30, falo só do trigo. Não falo do campo que continha tanto o trigo como a discórdia.

Então este livro se dedica a descrever aos primeiros cristãos que viveram entre os anos 90 e 199 d.C. Mas os cristãos do seguinte século geralmente mantiveram as mesmas crenças e práticas. As grandes mudanças na doutrina cristã se fizeram depois de 313, ano em que o imperador romano Constantino legalizou o cristianismo. Por esta razão, neste livro utilizo algumas citações de escritores que viveram entre os anos 200 e 313, com a condição que concordem com as crenças dos que viveram no século depois dos apóstolos. Eram estes “os santos pais”?

Quando eu começo a falar dos escritores entre os primeiros cristãos, muitas pessoas depois respondem: “Ah, bem. Você se refere a ‘os santos pais’ da igreja.”Mas estes escritores não eram “santos pais da igreja”. A maioria deles eram cristãos ordinários que trabalhavam com suas mãos, ainda que sim tivesse mais educação que muitos outros em seu tempo. Tivessem-se indignado com qualquer pessoa que se tivesse atrevido a chamá-los “santos pais”. Não tinham tal nome. Os únicos “pais” da igreja que eles conheciam éramos apóstolos—e não os chamaram pais.

Em verdade, o fato de que estes escritores não eram pais da igreja adiciona grande valor a seus escritos. Se eles fossem “pais” de algum grande sistema teológico, seus escritos seriam de pouco valor para nós. Em tal caso, aprenderíamos só as doutrinas que devastes teólogos tivessem proposto. Mas os cristãos no segundo século não escreveram obras de teologia. Nenhum cristão do segundo século pode ser chamado teólogo. Não existia nesse tempo uma teologia sistemática no sentido atual, nem em todo mundo antes do imperador Constantino.

Os escritos da igreja primitiva podem ser divididos em três classes: (1) obras de apologia que defendiam as crenças cristãs frente aos ataques dos judeus e dos romanos; (2) obras que defendiam ao cristianismo contra os hereges; e (3) correspondência entre igrejas. Estes escritos dão depoimento das crenças e práticas universais na época depois da morte dos apóstolos E é isto o que lhes dá grande valor.

Se tivesse um cristão entre os anos 90 e 313 a quem pudéssemos chamar “teólogo” seria Orígenes s. Mas Orígenes s não impunha suas crenças sobre outros cristãos. Ao invés, o era o menos dogmático de todos os escritores dos primeiros séculos da época cristã. E nesta época nenhum escritor mantinha um dogma estrito, senão só nos pontos mais básicos da fé cristã.

Um dos distintivos do cristianismo primitivo é a carência de muitos dogmas inflexíveis. Em realidade, quanto mais atrás um vai à história do cristianismo, menos de teologia acha. No entanto, ainda que tivesse muita diversidade entre os primeiros cristãos, ainda achei que tinha muitos dos mesmos temas e crenças expressados em todos os escritos deles. Este livro examina estas crenças e práticas universais dos primeiros cristãos.

Com este propósito, não falo neste livro de nenhuma crença nem prática da igreja primitiva a não ser que cumpra os seguintes requisitos:

1. Todos os primeiros cristãos que escrevem do tema concordam no que dizem; e

2. Pelo menos cinco escritores, distantes os uns dos outros quanto à geografia e tempo, escrevem do mesmo tema.

Realmente, a maioria dos pontos que apresento neste livro são apoiados pelo depoimento a mais de cinco escritores. 

                           Uma introdução breve a oito dos escritores principais

 

Antes de apresentar as crenças dos primeiros cristãos, quero introduzir alguns dos escritores principais os quais vou citar:

                            Clemente de Roma (30 – 100)

Várias hipóteses sobre ele já foram levantadas para identificá-lo. Para alguns ele pertencia à família real, para outros ele era colaborador do apóstolo Paulo, outros ainda sugeriram que ele escreveu a carta aos hebreus. Assim sendo, as informações que temos sobre Clemente de Roma vão desde lendárias até testemunhas fidedignas. Alguns pais aceitaram esta identificação de colaborador do apóstolo Paulo, como Orígenes, Eusébio de Cesaréia, Jerônimo, Irineu de Lião entre outros. 

A principal obra de Clemente é uma carta redigida em grego, endereçada aos crentes da cidade de Corinto, mais ou menos no final do reinado de Domiciano (81-96) ou o começo do reino de Nerva (96-98). Trata principalmente da ordem e da paz da Igreja, usando como lembrança que formamos um corpo em Cristo e como neste corpo deve reinar a unidade e não a desordem, pois Deus deseja a ordem em suas alianças. Utiliza-se ainda da analogia da adoração ordeira do Antigo Israel, e do princípio apostólico de apontar uma continuação de homens de reputação.

 

                                               Inácio de Antioquia (xxx – 117)

Mesmo sendo de Antioquia, seu nome Ignacius, deriva-se do latim: igne: fogo, e natus: nascido. Era um homem nascido do fogo, ardente, apaixonado por Cristo. Segundo Eusébio, após a morte de Evódio, que teria sido o primeiro bispo de Antioquia, Inácio fora nomeado o segundo bispo desta influente cidade.

Escreveu algumas epístolas às Igrejas asiáticas: uma à igreja de Éfeso, outra à igrejas de Magnésia, situada no Meander, outra a igreja de Trales, e ainda para Filadélfia e Esmirna, e por fim à igreja de Roma. O objetivo da carta a Roma, era solicitar que os irmãos não impedissem seu martírio, pois estava a caminho de Roma, durante o reinado de Trajano (98 – 117).

Antioquia – Fundada por volta do ano 300 a.C., por Seleuco Nicátor, com nome de Antiokkeia, (cidade de Antíoco), tornou-se capital do império selêucida e grande centro do Oriente helenístico. Conquistada pelos Romanos por volta do ano 64 a.C., conservou seu estatuto de cidade livre e foi a terceira cidade do Império depois de Roma e Alexandria (no Egito), chegando a abrigar 500 mil habitantes. Foi evangelizada pelos apóstolos Pedro, Paulo e Barnabé. Tornou-se metrópole religiosa, sede de um patriarcado e centro de numerosas controvérsias, entre elas o arianismo, o monofisismo, o nestorianismo. Era considerada Igreja-mãe do Oriente.