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ciencia e fé criacionismo big bang ? ( n.2)
ciencia e fé criacionismo big bang ? ( n.2)

Assuntos relevantes em discussões infrutíferas — Parte 3

 

Receio que na esteira da infrutífera discussão entre criacionistas e evolucionistas, seguindo o modelo estadunidense, a disputa intramuros — tal como ainda hoje lá persiste — provavelmente antropofagirá os argumentos religiosos antes de estes serem depreciados pelos cientistas. Refiro-me ao que disse Nancy Pearcey, no prefácio da obra As perguntas certas, de Phillip Johnson (um dos principais proponentes do Intelligent Design), acerca do fato de que antes de Johnson criar o chamado “Movimento do Projeto Inteligente”, “em vez de se unirem para enfrentar a hegemonia da teoria materialista da evolução”, revela Pearcey, “cristãos de todos os tipos discutiam entre si” (p.6). Quais seriam esses “todos os tipos”? Nancy responde dizendo que presenciou debates acirrados entre diversos grupos cristãos: “criacionistas da terra-jovem, criacionistas da terra-antiga, geólogos do dilúvio, criacionistas progressistas, teóricos do intervalo e evolucionistas teístas” (Ibid.). Assim, diz Pearcey, os “secularistas não precisavam batalhar pela marginalização do Cristianismo mediante uma estratégia do tipo ‘dividir e conquistar’, pois os cristãos estavam fazendo esse trabalho para eles” (p.7). A fim de “canalizar” toda essa força para um único lado, Phillip Johnson tratou de convencê-los a “esquecer” momentaneamente as diferenças e os detalhes presentes em cada uma das hipóteses acerca de como Deus criou tudo, concentrando a polêmica em torno de uma única questão com os naturalistas. À pergunta de qual seria essa questão, Nancy Pearcey responde: “É a questão do naturalismo filosófico: A natureza é tudo que existe? As forças da natureza podem, de forma exclusiva, explicar o universo e tudo que nele há? A vida surgiu por meio de processos darwinianos obscuros, materialistas ou a evidência aponta para outras forças? Ao confrontar a cultura secular, essas são as perguntas certas para servir como ponto de partida; todas as demais são secundárias. Os cristãos podem discutir sobre os detalhes de como Deus criou o mundo ou sobre quanto tempo ele levou para criá-lo, mas todos concordam com o fato de que o universo é a obra de um Deus pessoal” (p.7). A diversidade de visões acerca de um mesmo fenômeno, isto é, da existência do todo ou dotudo, mesmo entre os proponentes de que o tudo ou o todo seja produto de um Criador, demonstra o quanto há de complexidade no assunto, não podendo tal discussão assumir um tom de acabamento ou de ultimato. Nesse aspecto, é extremamente sensata a posição de Marcelo Gleiser, quando este afirma no texto “Grandes questões”, em sua coluna no site daFolha, que cientificamente “Não existem explicações finais; apenas descrições satisfatórias dentro do que podemos testar”.

 

Suspeito, porém, que no Brasil a discussão não consiga reunir pensadores cristãos das várias vertentes do criacionismo. Primeiramente pelo fato de que, dependentes do material teológico que é produzido na América do Norte pelo grupo postulante do criacionismo da terra jovem, parece não haver tantas correntes aqui e, em vários casos, dá-se a impressão que muitos sequer sabem da existência delas. Em segundo lugar, e ainda mais grave, a tragédia do personalismo que impera nos círculos protestante e evangélico faz com que a opinião de seus pensadores transforme-se em verdade inquestionável. Nesse particular é importante conhecer a advertência do evangelista estadunidense Charles Finney, apresentada ainda no início de sua Teologia Sistemática, a respeito do fato de que a inquestionabilidade é uma postura inadmissível, “na teologia como seria em qualquer outro ramo da ciência, e tão prejudicial e entorpecente quanto absurdo e ridículo” (p.24). O teólogo é ainda mais explícito quando se trata da pretensa performance de “imutabilidade” que alguns ostentam como se isso virtude fosse: “Ainda não consegui estereotipar minhas opiniões teológicas e parei de pensar consegui-lo algum dia. A idéia é absurda. Nada, senão um intelecto onisciente, pode continuar mantendo uma identidade precisa de concepções e opiniões. Mentes finitas, a menos que adormecidas ou entorpecidas por preconceitos, devem avançar no conhecimento. A descoberta de uma nova verdade modificará concepções e opiniões antigas, e talvez esse processo não tenha fim em mentes finitas, qualquer que seja o mundo. A verdadeira coerência cristã não consiste em estereotipar nossas opiniões e concepções e em recusar-nos a fazer qualquer progresso para não sermos acusados de mudança, mas consiste em manter a mente aberta para receber os raios da verdade por todos os lados e em mudar nossas opiniões, linguagem e prática na freqüência e na velocidade com que conseguimos obter informações complementares. Chamo-o de coerência cristã porque só essa trilha está de acordo com uma confissão cristã. Uma confissão cristã implica investigação contínua e mudança de opinião e prática em correspondência ao conhecimento crescente. Nenhum cristão, portanto, e nenhum teólogo deve temer uma mudança em suas concepções, linguagem ou práticas em conformidade com uma luz crescente. A predominância desse temor manteria o mundo no mínimo numa imobilidade perpétua, e todos os objetos da ciência e, por conseguinte, todos os aperfeiçoamentos tornar-se-iam impossíveis” (pp.23-24).

Chama a atenção quando Nancy Pearcey destaca no prefácio de As perguntas certas o modelo de liderança do autor, dizendo que Johnson mantém um relacionamento amistoso com as pessoas “secularistas” com quem debate, rejeita o “paradigma das celebridades” evangélicas que utilizam uma questão, às vezes até ilegítima ou equivocada, para se autopromoverem e que, além disso, escreve seus próprios livros, fazendo questão de acrescentar que isso se dá “ao contrário de muitos cristãos famosos que colocam seus nomes em obras escritas por outras pessoas” (p.19). Ela diz que ao “rejeitar o modelo de celebridade — ao desenvolver os demais, em vez de buscar se apossar de seus dons e chamados para ele mesmo — Johnson está nutrindo um movimento que irá levar a causa adiante, para a próxima geração” (Ibid.). Nancy afirma ainda que esse exemplo “é verdadeiramente revolucionário e merece ser citado como um modelo mais autêntico de liderança cristã, uma aplicação prática da doutrina do corpo de Cristo: aqueles que são os líderes naturais não receberam de Deus dons de liderança para construírem um legado pessoal, mas para desenvolverem os demais, que são parte do corpo de Cristo”. Mesmo porque, finaliza, “nossos dons não se destinam a servir à nossa própria imagem e reputação, mas, sim, aos nossos companheiros e irmãos em Cristo” (Ibid.). É justamente por isso que “Johnson desenvolveu uma estratégia que pode ser sintetizada na metáfora da cunha, que se tornou sua marca”, destaca Pearcey e completa: “Devido à sua posição na Universidade de Berkeley e aos seus consideráveis talentos intelectuais, Johnson tem agido como o fio da lâmina afiada de uma cunha, provocando uma primeira rachadura no ‘tronco’ do naturalismo científico. Porém, desde o início, ele teve consciência de que o fio da lâmina não poderia fazer todo o trabalho sozinho. Para que sua cunha obtivesse êxito, a penetração inicial tinha de ser seguida pela parte mais espessa da lâmina — um crescente grupo de cientistas, acadêmicos e escritores, o qual fosse se propagando atrás do líder” (p.18). Como demonstração prática desse apoio ao movimento e não a si mesmo, Johnson “empresta seu nome e sua reputação para ajudar companheiros no movimento a alcançarem destaque e voz própria”, pois, como diz Nancy, o fundador do Movimento do Projeto Inteligente “reconhece a importância de se levantar a maior quantidade possível de vozes, cada qual válida por si mesma, para abordar os vários aspectos do projeto inteligente” (p.19). 

Lamentavelmente a viabilidade de um movimento semelhante parece impossível em nosso país. De um lado pela falta de interesse ao tema e até apatia, senão aversão, intelectual nutrida pelos evangélicos. Por outro, a altivez segregacionista dos setores mais intelectualizados do protestantismo que acreditam que só eles fazem teologia de qualidade e pensam. Há ainda grupos como os adventistas, por exemplo, que possuem uma tradição no debate do assunto, não obstante, por questões de diferenças teológicas em outros campos que não o da criação propriamente dita, dificilmente aceitarão (e muito menos serão aceitos) compor tal movimento. Por conta da “verdade-doutrinária-particular” de cada segmento cristão é praticamente impossível que os diversos grupos se unam em prol de uma causa maior. Na realidade, a lógica de mercado que impera no cristianismo brasileiro faz com que as denominações briguem entre si, e impossibilita qualquer união de esforços. Como, nas palavras do filósofo romeno Emil Cioran, “só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos”, ou seja, “os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos [excessos] da Inquisição ou da Reforma”, a conclusão de Cioran é que o “diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade” (Breviário de decomposição, pp.14-15). Não é incomum ver gente negando a idolatria a imagens de escultura, ao mesmo tempo em que cultiva idolatria de personalidades ou de ideias, sejam estas doutrinárias, teológicas, personalistas, históricas ou científicas. Considerando que o mundo ocidental, depois do Iluminismo, substituiu as “certezas doutrinárias medievais” provenientes das crenças teológicas da religião cristã pela “deusa razão”, e que, em função disso transferiu a sua passionalidade para outra área que, supostamente oferece total segurança de suas “certezas”; milhões de crianças, adolescentes e jovens cristãos vivem uma espécie de esquizofrenia social. De um lado, a ciência diz uma coisa, de outro, a igreja ensina outra. Assim, com ambas instituições se criticando, é inevitável que surja a pergunta: “De que lado está a ‘verdade’?”

 

Discussões infrutíferas (ou a briga pela posse do discurso “dominante-dominador”) versus debates sadios (ou o reconhecimento mútuo de que somos limitados e não temos respostas finais)

 

Quando iniciei esse texto, o fiz justamente para mostrar que a indagação — “De que lado está a ‘verdade’”? — não é a pergunta correta, pois ela transforma um assunto relevante em uma arenga pessoal e reproduz a postura belicosa das relações de poder e da luta pela posse do discurso “dominante-dominador”. Perguntar pelo lado em que a verdade está nesse quesito, é algo incorreto porque além de provocar uma disputa, como disserta o já diversas vezes citado C. S. Lewis em sua obra Milagres, são as metafísicas das cosmovisões que condicionam as respostas de suas perguntas mais fundamentais antes mesmos de estas serem formuladas. O autor de As Crônicas de Nárniaensina que até mesmo “o resultado da pesquisa histórica depende do ponto de vista filosófico que adotamos, antes mesmo de analisar as evidências” (p.12). Por isso, em qualquer discussão ou debate, para fins de honestidade intelectual, a “questão filosófica precisa, portanto, ser considerada em primeiro lugar” (Ibid.). A questão filosófica para ele era, de uma parte o Naturalismo e, de outra, o Sobrenaturalismo. Lewis chamava as pessoas que não acreditavam na existência de nada além da Natureza de Naturalistas. Quanto aos que acreditavam que existe “algo mais”, ou seja, além da Natureza, ele os chamava de Sobrenaturalistas (p.16). Antes de seguir, é oportuno destacar que, conforme fica claro em vários trechos de sua obra (q.v. pp.28,35,36,38,39,86), Lewis pensava na evolução como produto da criação divina, ou seja, ele era o que modernamente conhecemos como “evolucionista teísta”.* No capítulo três de Milagres, depois de abordar de forma tácita e ligeira a nascente física quântica (a obra foi publicada em 1947), Lewis afirma que em “tempos recentes” surgira algo que ele classificou como “uma ameaça contra o Naturalismo estrito” (p.26). Devido ao fato de ele não acreditar em tal pensamento, a utilização da teoria deu-se apenas como exemplo da inconsistência de uma concepção estritamente naturalística que interpreta a realidade como um sistema fechado de causa e efeito. “Ora”, afirmou Lewis, “se essa teoria for verdadeira, na realidade já admitimos algo além da Natureza”, pois se “o movimento das unidades individuais [da matéria, ou seja, “partículas”] são eventos ‘independentes’, que não se interligam com os demais, então esses movimentos não fazem parte da Natureza” (p.27). Para ele, admitir que “‘os movimentos das unidades individuais são permanentemente imprevisíveis para nós’” (Ibid.), isto é, mesmo que tais elementos não sejam aleatórios entre si e que apenas pareçam se apresentar assim aos nossos olhos ou à nossa percepção, tal raciocínio coloca em xeque a validade do próprio conhecimento em si! 

A despeito de sua não aceitação, Lewis entendeu perfeitamente as implicações do fato de a física quântica tornar-se uma teoria viável. Isso porque, em suas palavras, “todo conhecimento possível depende então da validade do raciocínio” (p.28). Logo, é preciso que “o sentimento de certeza denotado em expressões como deve serportanto e desde que represent[e] uma percepção real de como as coisas fora de nossa mente, de fato, ‘devem’ ser” (pp.28-29). Em outras palavras, “se essa certeza [...] se configura meramente [como] um sentimento em nossa mente, e não uma percepção genuína das realidades além delas — se é uma simples representação da maneira pela qual nossa mente trabalha —, então não podemos obter conhecimento”, pois, completa o autor, “a menos que o raciocínio humano seja válido, nenhuma ciência pode ser verdadeira” (p.29). O ponto a destacar é que quando o autor irlandês construiu seu discurso, o fez baseado em uma ideia de razão onipotente ou forte, em outras palavras, em uma faculdade humana que, se ainda não pode, certamente chegará a um estágio em que poderá responder a todas as questões. Isso é tão verdade que ele chega a dizer que “muitas coisas só serão explicadas quando a ciência atingir um nível de progresso mais avançado” (p.25), pois a “glória da ciência é o progresso” (p.28). Assim, como Lewis pretende explicar a possibilidade da crença em Deus (ou na sobrenaturalidade) como algo absolutamente racional, torna-se explicável sua ampla defesa da razão como forma de justificar a certeza de que o conhecimento baseado na percepção pode ser infalível e, sem sombra de dúvida, corresponder à realidade: “Todos concordam que a razão, até mesmo a sensibilidade, e a própria vida chegaram posteriormente à Natureza. Se não existe nada além da Natureza, então a razão deve ter vindo à existência por um processo histórico, e para o Naturalista esse processo com certeza não se destinava a produzir um comportamento mental que levasse à descoberta da verdade. Não houve um Planejador, e, de fato, até que surgissem os pensadores, não havia verdade nem falsidade. O tipo de comportamento mental que hoje denominamos pensamento racional ou inferência deve ter sido, portanto, ‘deduzido’ por seleção natural, pela eliminação gradual dos tipos menos aptos a sobreviver” (p.35). Na realidade, mesmo sem essa intenção, ao falar do valor e da origem do pensamento, Lewis cria um grande problema para a teoria da evolução (não, obviamente, para o modo teísta como ele a concebia): “Houve uma época, então, em que nossos pensamentos não eram racionais. Isto é, todos os nossos pensamentos eram — como muitos ainda o são — meramente acontecimentos subjetivos, e não apreensões da verdade objetiva. Aqueles que de algum modo tinham uma causa externa (como nossas dores) não passavam de reação aos estímulos. Ora, a seleção natural poderia operar somente eliminando as reações biologicamente prejudiciais e multiplicando as que levavam à sobrevivência. É inconcebível, todavia, que qualquer aperfeiçoamento nas reações pudesse transformá-las em atos de reflexão e conhecimento ou, mesmo que remotamente, tender a fazê-lo” (pp.35-36).

Os “atos de reflexão e conhecimento”, mencionados pelo autor de As Crônicas de Nárnia, é o que ele chama de inferências. Para Lewis, é incoerente a tentativa do Naturalista em construir “uma história da evolução da razão”, pois no sistema fechado de causa e efeito proposto pelo Naturalismo segue-se — à alegação inicial acerca da impossibilidade de saber “‘exatamente como a seleção natural transform[ou] o comportamento mental sub-racional em inferências que levam à verdade’” — a seguinte “inferência”: “Entretanto, temos certeza de que isso, de fato, aconteceu. A seleção natural destina-se a preservar e aumentar o comportamento útil. Descobrimos também que o nosso hábito de inferir é, na verdade, útil e, sendo assim, deve conduzir à verdade’” (p.39). A esse respeito, ele diz que mesmo sem o perceber, a “própria inferência está em julgamento, isto é, o Naturalista deu uma explicação daquilo que julgávamos ser nossas inferências, o que sugere que elas são de modo algum verdadeirosinsights. Tanto nós quanto ele queremos ter certeza. E essa certeza restabelecida revela-se mais uma inferência (‘se é útil, então deve ser verdadeira’), como se esta não estivesse, uma vez que aceitemos sua hipótese evolucionária, sob a mesma suspeita que as demais deduções” (Ibid.). Nesse exemplo de incoerência vejo, mal comparando, o mesmo problema de palestrantes de educação que ao falar sobre didática enxovalham o método expositivo através de uma preleção! Mesmo reconhecendo que em termos práticos — “calcificar um osso, construir uma ponte e fazer um foguete espacial” — tanto o Naturalista como o Sobrenaturalista valoriza a razão ou o comportamento racional, mas que “quando partimos para a especulação e tentamos obter uma visão geral da ‘realidade’, acabamos por nos envolver em disputas infindáveis, inúteis e provavelmente apenas verbais de um pensador” (p.40), Lewis afirma que a utilização da razão de forma especulativa é menos quimérica para o teísta do que para o Naturalista. Isso porque, segundo ele, o teísta “não está comprometido com a visão de que a razão é um desenvolvimento comparativamente recente, modelado por um processo de seleção que só pode escolher o que é biologicamente útil. Para ele, a razão — a razão de Deus — é mais antiga que a Natureza e dela deriva a ordem natural que, sozinha, nos capacita a conhecê-la. Para ele, no ato de conhecimento a mente humana é iluminada pela razão Divina. Ela é libertada, na medida necessária, do imenso vínculo da causalidade não racional; é livre da necessidade de determinar esse vínculo pela verdade conhecida. E os processos preliminares dentro da Natureza que conduzem a essa libertação, se é que existe algum, têm exatamente esse objetivo” (p.41).

Ao argumentar “que o pensamento racional não faz parte do sistema da Natureza” (p.49), o autor irlandês o faz pela verdade “que tal ato, para ser o que alega ser — e se não for, todo o nosso pensamento perderá o crédito —, não pode consistir simplesmente numa exibição, num dado espaço-tempo desse sistema de eventos total, e em grande medida irracional do que chamamos ‘Natureza’. Ele precisa se libertar dessa cadeia universal para ser definido por sua real essência” (pp.41-42). Isso porque a assunção de que o pensamento racional depende do irracional, “enfraquece a credibilidade do pensamento”, ou seja, crer que a “Razão [é] oriunda da não-razão” faz com que todo o “pensamento [seja] posto em dúvida” (p.49). Assim, Lewis conclui que “é óbvio que mais cedo ou mais tarde teremos de admitir uma Razão que exista absolutamente por si mesma. O problema é se você ou eu podemos ser essa Razão auto-existente” (Ibid.). Aqui entra a diferença crucial entre Naturalismo e Sobrenaturalismo, pois com a expressão “Sobrenatural”, Lewis refere-se a “algo que invade ou é acrescentado ao grande acontecimento interligado no espaço e no tempo, em vez de simplesmente surgir dele” (p.258). Dessa maneira, a ideia de geração espontânea, ou da “existência por si mesma” da Razão, segundo Lewis, significa justamente o “tipo de existência que o Naturalismo atribui ao ‘espetáculo completo’ e o Sobrenaturalismo atribui a Deus. Por exemplo, o que existe por si mesmo deve ter existido desde a eternidade, porque se algo mais pudesse fazê-lo começar a existir então não existiria por si mesmo, mas por causa de outra coisa” (pp.49-50). É desnecessário dizer que tal exercício retroativo não tem fim a menos que se resolva tomar partido por uma das opções, ou seja, a Naturalista ou a Sobrenaturalista. C. S. Lewis, porém, argumenta que a decisão pelo Naturalismo colocaria sub judice a própria dialética racional empregada nesse exercício. Sua conclusão é que se, de fato, creditamos à nossa razão a capacidade de apreender a realidade e assim produzir ciência, é preciso conceber uma “mente cósmica” que, por sua vez, apenas “nos ajudará [no entendimento de nossa origem] se a colocarmos no início, se partirmos do pressuposto de que ela é não o produto do sistema total, mas o Fato básico, original, auto-existente, que existe por iniciativa própria” (p.53). Ocorre que, para o autor, “admitir esse tipo de mente cósmica é admitir um Deus fora da Natureza, um Deus transcendente e sobrenatural” (pp.53-54). Assim, tal “caminho, que parecia oferecer uma saída, leva-nos de volta ao ponto de partida” (p.54).

Uma vez que a formação de Lewis, como ele mesmo diz, baseava-se em uma “educação filosófica, e não científica” (p.27), à proposição da nova física que emergia em sua época substituindo o sistema newtoniano, a qual afirma que não há como prever o movimento das partículas, sua reação não poderia ser outra senão um completo ceticismo, pois, em sua ótica, para a ciência progredir (e essa é “a sua glória”, dizia ele), é necessário que a Natureza obedeça a um sistema previsível que encontre conexão na Mente Criadora e em nossa própria mente. A crença na razão traduzida no positivismo científico diz exatamente isso: Haverá um progresso linear que culminará no domínio total da natureza e de toda a realidade. É esse o ideal da modernidade. Mesmo com toda a sua crença na capacidade da razão e com inferências brilhantes e argutas, C. S. Lewis era suficientemente lúcido e cuidadoso para concluir advertindo: “Não afirmo que a tese da criação da Natureza por Deus e a existência dele possam ser rigorosamente provadas, mas me parecem extremamente prováveis, tão prováveis que qualquer pessoa que aborde a questão com a mente aberta não defenderá com seriedade outra hipótese. [...] Todas as evidências apontam nessa direção, e se tentamos acreditar em outra coisa surgem dificuldades de todos os lados. Desconheço uma teoria filosófica que seja um avanço radical comparável às palavras de Gênesis: ‘No princípio Deus criou o céu e a terra’. Digo ‘radical’ porque a história de Gênesis, como disse Jerônimo, é contada em forma de ‘poesia popular’ ou, como diríamos hoje, em forma de lenda ou conto popular. Entretanto, se a compararmos com as lendas de outros povos sobre a Criação — com todos os aqueles absurdos encantados sobre gigantes que precisam ser destruídos e dilúvios cujas águas precisam baixar, trazidos à existência antes da Criação —, a profundidade e a originalidade da lenda hebraica logo serão evidentes. A ideia de criação, no sentido estrito da palavra, é perfeitamente compreendida” (p.57). A lição que Lewis nos ensina, é que tentar provar cientificamente o criacionismo, ou seja, como uma teoria, é algo que deve ser precedido pela demonstração indiscutível de que Deus existe. Uma vez que modernamente reconhece-se que a razão não pode provar a inexistência divina e também a sua existência, qual seria o papel do Intelligent Design

Antes de tratar da questão é preciso esclarecer que há divergências acerca do que realmente significa o ID. No primeiro capítulo da obra Fé cristã e pensamento evolucionista, um dos organizadores, Alfonso Garcia Rubio, afirma que em “contraposição a um ‘evolucionismo’ agnóstico ou até confessadamente ateu, os partidários do Intelligent Design aceitam a visão evolucionista, defendendo, ao mesmo tempo, a existência de um princípio organizador, de uma Mente inteligente, atuando no universo desde o seu início e dotando-o de sentido” (p.21). O mundialmente conhecido Francis Collins, um dos diretores do Projeto Genoma, em A Linguagem de Deus, apesar de ter uma visão declaradamente evolucionista teísta (renomeada por ele de “BioLogos”, p.209), e de elencar falhas e inconsistências no ID tanto científicas quanto teológicas (pp.193-200), diz que “como geneticista, biólogo e pessoa que crê em Deus, esse movimento merece sérias reflexões” (p.189). Collins diz que “apesar de o ID ser apresentado como teoria científica, é justo afirmar que não nasceu da tradição científica” (p.190). Tal assertiva é algo que o próprio criador do Movimento do Projeto Inteligente, Phillip Johnson, reconhece, pois a sua proposta (já referida acima por Nancy Pearcey) é fazer com que se rompa (com a “Cunha”) a perspectiva materialista ou naturalista (a “tora”) de que o tudo ou o todoexiste como “produto de um processo evolutivo, não-dirigido e sem um propósito definido” (Ciência, intolerância e fé, p.16). Com o objetivo de dar um enfoque científico ao Movimento, posteriormente juntaram-se a Johnson, o biólogo Michael Behe e o matemático William Dembski. Esses, apesar de reconhecerem que por causa da complexidade que existe nas coisas há um planejador, não afirmam, diz Collins, “quem poderia ter sido esse planejador”. Não obstante, acrescenta Collins, “a perspectiva cristã da maioria dos líderes desse movimento sugere que essa força desconhecida viria de Deus em pessoa” (p.193). A diferença fundamental da proposta do diretor do Projeto Genoma em relação ao ID, é que “o BioLogos não se pretende uma teoria científica. Sua verdade só pode ser testada pela lógica espiritual do coração, da mente e da alma” (p.210).

A verdade é que todos começam de um ponto. Seja admitindo que tudo não passa de um processo cego e impessoal de “geração espontânea”, seja acreditando que o tudo ou o todo é fruto de um Criador. Assim, com base no exercício reflexivo empreendido até aqui, penso que o papel do Intelligent Design (para benefício autocrítico da própria teoria da evolução!) é concentrar-se, nas palavras de Collins, na demonstração das “deficiências percebidas na teoria evolucionária”, ainda que no final o objetivo seja “justificar a posterior complexidade extraordinária da vida” (p.189). Não obstante o criador do Movimento do Projeto Inteligente ser consensual com a inferência de C. S. Lewis de que “a inteligência é um fenômeno verdadeiro que pode ser cientificamente identificado e que não pode ser reduzido a causas materiais” (Ciência, intolerância e fé, p.17), de sua parte existe uma disposição autocrítica, pois como ele afirma na mesma obra, a “Cunha” é um movimento informal, intelectual e não confessional (pp.17,19) que “não tem um credo oficial ou uma declaração de fé” (p.19). Assim, em seu “estágio inicial”, diz o mesmo autor, “a pergunta certa [a ser feita é] se a ciência e o naturalismo são realmente a mesma coisa, ou se a evidência científica pode estar se afastando das respostas materialistas. Se alguém acha que essa é uma boa pergunta e que merece uma investigação justa, ele está seguindo do nosso lado — mesmo que essa pessoa pense que a ciência naturalista acabe solucionando os problemas e oferecendo respostas que vão diminuir ainda mais o valor da crença de que Deus teve papel ativo na criação. Os que discordam da nossa pergunta não são nossos inimigos. Pelo contrário, fazem parte essencial do diálogo, para ajudar-nos a verificar se estamos testando nossas próprias idéias como deveríamos. Se nós, que fazemos parte da Cunha, temo um inimigo, não são aqueles que estão em oposição aberta e sincera contra nossas propostas, mas sim os ofuscadores— os que resistem a qualquer definição clara de termos e questões, que insistem em que as organizações científicas devam ser obedecidas sem questionamento, e que se contentam em encobrir as contradições lógicas com concessões superficiais” (pp.19-20). A lúcida posição de Johnson fez-me lembrar da do pastor e psicanalista suíço Oscar Pfister que, em uma de suas correspondências a Freud, depois de ler uma brochura do último com duras críticas à religião, disse: “Um adversário de grande capacidade intelectual é mais útil à religião que mil adeptos inúteis” (Cartas entre Freud e Pfister [1909-1939], p.143). Daí porque o caminho do diálogo é sempre mais interessante que o da discussão infrutífera que ambiciona a posse do discurso “dominante-dominador”.

* Apesar dessa minha conclusão, Nancy Pearcey diz em sua obra Verdade Absoluta, que no “fim [C. S. Lewis], abandonou o materialismo e aceitou o idealismo filosófico, acompanhado pelo panteísmo, no esforço sério de reunir os dois reinos contraditórios que ele denominou ‘razão’ e ‘romantismo’” (p.136).

 

 

 

 Assuntos relevantes em discussões infrutíferas — Parte 4

Seg, 08/04/2013 por

Houve um tempo, um longo tempo, em que a religião, através da Igreja cristã, devido ao poder que ela adquirira através de sua fusão com o Império Bizantino-Romano iniciada na era Constantino (Pontifex Maximus), ditava as regras sobre praticamente tudo no mundo ocidental. Pertencia à Igreja a posse do discurso dominante-dominador e, com isso, ela dispunha da “verdade”. Tudo o que se pensava, tinha de necessariamente aportar ou acomodar-se ao paradigma teológico-filosófico já definido pela Igreja. Toda e qualquer pergunta obtinha sempre a mesma e única resposta, pois esta já estava pronta. Esse longo tempo acabou, pois o mundo, nas palavras do teólogo Dietrich Bonhoeffer, “chegou à consciência de si mesmo e de suas leis vitais”, ou seja, “atingiu a maioridade” (Resistência e submissão, p.435). Ao dizer isso, o teólogo alemão não estava simplistamente condescendendo com o racionalismo, mas procurava demonstrar o perigo tanto da virulência apologética quanto da autodestruição do liberalismo teológico. Ao fugir dos extremos, Bonhoeffer alinhava-se a Karl Barth na defesa de que, na adoção de uma postura de equilíbrio, a “maioridade do mundo não será mais motivo de polêmica e apologia, mas o mundo será de fato compreendido melhor do que ele mesmo se compreende, a saber, a partir do evangelho, a partir de Cristo” (Ibid., p.440). Todos já sabem que a celeuma criada pela Igreja cristã durante toda a Idade Média (e recentemente assumida pelo protestantismo evangélico), curiosamente, ocorreu por questões que quase nada tem com o Evangelho. O exemplo do processo da perda tutelar do mundo por parte da Igreja cristã que teve início por volta do século 16, primeiramente com o impacto da Reforma Protestante e, posteriormente, com a chamada Revolução Científica, deveria ser suficiente como lição, ensinando-nos alguma coisa. Incrivelmente, a Revolução Científica foi desencadeada pela “aventura metafísica” iniciada com os gregos e cooptada posteriormente pela própria teologia cristã em sua busca escolástica de um fundamento último. Como exemplo emblemático e inequívoco pode-se citar as descobertas cosmológicas de cristãos como Copérnico e Galileu que destoaram da interpretação filosófica e religiosa defendida pela Igreja. Por questões de conveniência, a Bíblia Sagrada passou a ser lida pelas lentes do aristotelismo que, como a filosofia dominante naquele período e após ter sido cristianizada por Tomás de Aquino, era o aporte teórico absoluto e ao qual a Palavra de Deus estava em total conformidade. Lógico, naquele momento histórico isso era extremamente vantajoso, pois demonstrava que a Bíblia possuía “respaldo” científico-racional. Esse engessamento, porém, fez com que ela fosse indevidamente transformada em um livro de “ciências naturais”.

 

Preciso deixar claro que ao falar acerca desses assuntos, não há por minha parte nenhuma pretensão de objetividade histórica, pois o que está sendo discutido aqui são ideias e, como afirma Eduardo Duarte, “as idéias possuem história, um percurso no qual são redefinidas, reorganizadas e agregam outros valores de acordo com os contextos históricos e emocionais de cada coletivo que o legitima” (Epistemologia da comunicação, p.43). Faço essa advertência para não cair no “erro no qual caiu Voltaire, por ter confiado em demasia na lógica”, pois, completa o matemático e geômetra francês, Joseph Bertrand (1822-1900): “Não é ela que decide as questões históricas” (Os fundadores da astronomia moderna, p.16). Não obstante, mesmo as vozes mais convergentes admitem que quando os estudiosos trocaram as cosmologias aristotélica e ptolomaica pela copernicana, o mundo nunca mais foi o mesmo. Após a adoção, por parte de Galileu, do modelo heliocêntrico copernicano, revelada por ele em uma carta enviada ao astrônomo alemão Johannes Kepler, nas palavras do astrofísico Mario Livio, a “astrofísica moderna estava começando a tomar forma” (Deus é matemático?, p.83). Na verdade, diz o mesmo autor, a “carta marcou o alargamento da monumental desavença entre Galileu e a cosmologia aristotélica” (Ibid.). Tal se deu pelo fato de que “Galileu Galilei (1564-1642), que tinha uma orientação matemática e experimental bem mais acentuada [...], foi o primeiro a chamar atenção de que Aristóteles havia se enganado inteiramente” (Ibid., p.60). Mario Livio diz que o “surpreendente na falsa lei de movimento de Aristóteles não é que estava errada, mas que foi aceita por quase 2 mil anos. Como poderia uma ideia imperfeita desfrutar tão notável longevidade?” (Ibid., p.61). Livio afirma que há três pontos a ser considerados para essa resposta: “Primeiro, havia o simples fato de que, na ausência de medições precisas, a lei de Aristóteles parecia concordar com o senso comum baseado em experiência — folhas de papiro de fato flutuavam no espaço, enquanto pedaços de chumbo não. [...] Segundo, havia o peso colossal da reputação e autoridade praticamente inigualáveis de Aristóteles como um erudito. Afinal, foi este o homem que formulou os fundamentos de grande parte da cultura ocidental” (Ibid.). Finalmente, a “terceira razão para a incrível durabilidade da teoria incorreta de Aristóteles foi o fato de a Igreja cristã tê-la adotado como parte de sua própria ortodoxia oficial. Isso funcionou como um impedimento contra a maioria das tentativas de se questionar as asserções de Aristóteles” (Ibid., pp.61-62). 

 

O drama maior é que Galileu não estava contra a Igreja, não era ateu e muito menos queria desacreditar a Bíblia. O erro todo foi a Igreja cristã ter submetido a sua teologia às ideias da investigação científica. Pior, ter promovido um concordismo entre o pensamento aristotélico e os textos bíblicos. A intenção galileana, apesar de também não ser boa, era das melhores — “equiparar a matemática com a linguagem de Deus”. Mario Livio diz que essa “identificação, entretanto, levantou outro sério problema — um que estava prestes a ter um impacto dramático na vida de Galileu” (Ibid., p.99). A síntese de tal drama, nas palavras do astrofísico, é que de “acordo com Galileu, Deus falava na linguagem da matemática no projeto da natureza”, mas, contrariamente, de “acordo com a Igreja Católica, Deus era o ‘autor’ da Bíblia” (Ibid.). Assim, impôs-se a questão: “O que se devia fazer então com aqueles casos em que explicações científicas com base matemática pareciam contradizer as escrituras? Os teólogos do Concílio de Trento de 1546 responderam sem meias-palavras: ‘Ninguém que confie em seu próprio julgamento e que distorça as Escrituras Sagradas de acordo com sua própria concepção ousará interpretá-las contrariamente àquele sentido que a Santa Madre Igreja, a quem cabe julgar seu verdadeiro sentido e significado, sustentou ou sustenta.’ Assim sendo, quando, em 1616, pediram aos teólogos que dessem sua opinião sobre a cosmologia heliocêntrica de Copérnico, eles concluíram que era ‘formalmente herege, já que contradiz explicitamente em muitos lugares o sentido da Sagrada Escritura’. Em outras palavras, o que estava verdadeiramente no cerne da objeção da Igreja ao copernicanismo de Galileu não era tanto a remoção da Terra de sua posição central no cosmo, mas, antes, o desafio à autoridade da Igreja na interpretação das escrituras” (Ibid, pp.99-100). O mais irônico era que, apesar das tentativas de Galileu de basear-se “em inúmeras passagens do mais venerado dos primeiros teólogos antigos — Santo Agostinho — para apoiar sua interpretação da relação entre as ciências naturais e as Escrituras não lhe conquistaram muita aprovação. Apesar das cartas articuladas em que sua tese principal de que não existe nenhum desacordo (exceto superficial) entre a teoria copernicana e os textos bíblicos, os teólogos de sua época consideraram os argumentos de Galileu uma indevida incursão em seu domínio. Cinicamente, esses mesmos teólogos não hesitavam em expressar opiniões sobre questões científicas” (Ibid., p.102). Para Mario Livio, o chamado caso Galileu e a sua conclusão com o pedido de perdão do papa em 31 de outubro de 1992, deveriam soar como advertências para as tentativas de “introduzir o criacionismo bíblico como uma teoria ‘científica’ alternativa (sob o mal velado título de ‘projeto (ou desenho) inteligente’)”, pois, completa, “é bom lembrar que Galileu já lutou sua batalha há quase quatrocentos anos — e venceu!” (Ibid., p.104).

 

Temendo justamente por algo semelhante e na intenção de evitar que o mesmo problema se repetisse mais uma vez na história (algo que já estava acontecendo na negação apologética e na aceitação acrítica da teologia liberal), é que Bonhoeffer chamava a atenção para a maioridade do mundo. Evidentemente que o teólogo alemão estava influenciado pela leitura de Wilhelm Dilthey (criador dasGeisteswissenschaften ou “ciências do espírito”), particularmente por uma obra citada pelos editores de suas “cartas da prisão”, com destaque para alguns trechos diltheyanos: “Quando o sistema teológico-metafísico [...] havia sido abalado nos séculos 15 e 16 [...]: então surgiu, a partir das reais necessidades da sociedade do século 17, no âmbito novo de uma ciência que atingira a maioridade, [...] um sistema científico que proporcionava princípios de validade geral para a condução da vida e o governo da sociedade” (Resistência e Submissão, p.435). Na sequência, a fim de tornar ainda mais evidente a origem do pensamento de Bonhoeffer a esse respeito, os editores complementam e citam mais um trecho de Dilthey: “Da rebelião holandesa até a Revolução Francesa [...], ele [o ‘sistema científico’ que assume a forma de ‘teologia natural e direito natural’] participou ativamente de todas as grandes transformações históricas. Tão admirado quanto censurado, ele é a expressão grandiosa da maioridade a partir de agora atingida pelo espírito humano na religião, no direito e no Estado” (Ibid.). Apesar da insistente negação de muitos pensadores, ninguém parte do “nada”, não há neutralidade e ela nem é bem-vinda. Mesmo ciente de que logo após os “primeiros sinais de desmoronamento da filosofia aristotélica e aos desafios à ideologia teológica da Igreja, os filósofos começaram a procurar por um novo alicerce sobre o qual erigir o conhecimento humano”, e que a “Matemática, com seu corpo de verdades aparentemente indubitável, ofereceu o que pareceu ser a base mais sólida para um novo começo” (Deus é matemático?, pp.105,106), sendo o cartesianismo o apogeu desse reinício, não durou muito para que essa concepção científica também fosse seriamente questionada. Em termos diretos, a fé na razão — um dos pilares e ideais do Iluminismo — sofreu um grande abalo com a teoria da relatividade e da física quântica. Nada mais era fixo ou estático, o universo se expandia e tudo estava se movendo. Richard Feynman, Prêmio Nobel em 1965 e conhecido como o mais importante físico americano da história, disse certa vez que “segundo a teoria da relatividade, dizer que duas coisas aconteceram ao mesmo tempo expressa a nossa opinião; outra pessoa pode concluir que um evento aconteceu antes do outro. A simultaneidade é uma impressão subjetiva” (Sobre as leis da física, p.133). Segundo ele, isso não deve surpreender, pois “os fenômenos cotidianos representam uma experiência limitada da natureza; sempre envolvem um grande número de partículas e objetos que se movem muito devagar, ou então outras condições especiais”, assim, finaliza, “só temos acesso direto a uma pequena fatia dos fenômenos naturais” (Ibid.). E mesmo essa pequena fatia a que o físico teórico tem acesso, escreve Einstein na abertura de uma obra de Max Planck, são os processos “mais simples que se apresentam à nossa experiência sensorial, pois os processos mais complexos não podem ser representados pela mente humana com a sutil exatidão e a sequência lógica que são indispensáveis ao físico teórico” (Autobiografia científica e outros ensaios, p.12).

 

Qualquer discussão epistemológica acerca da razão precisa considerar a mudança paradigmática do fundamento desta que, até a prevalência da física newtoniana, baseava-se na busca científica de decifração da simetria do “código oculto” das “leis da Natureza” (ou do funcionamento físico do universo), para a assimetria da nova física, descoberta primeiramente pela teoria da relatividade — geral e especial — einsteiniana, bem como a teoria dos quanta de Planck, aliadas ao princípio da incerteza esposado por Heisenberg e retratado por Feynman acima quando este falou sobre a teoria da relatividade. A mudança foi tão drástica que alterou uma busca milenar que, de acordo com Roque Frangiotti e Luciano Rosset, deu origem ao “nascimento da filosofia”. Segundo os autores, a filosofia “caracteriza-se pela ideia revolucionária da existência de uma ordem natural no Universo capaz de ser decodificada e entendida”. Para os mesmos autores, esse entendimento “fez surgir uma nova fundamentação epistêmica para explicar os fenômenos” (Metafísica Antiga e Medieval, p.26). Tal busca pela explicação tinha como objetivo encontrar ou descobrir a “causa que teria originado toda a realidade, isto é, o princípio do qual, pelo qual e no qual a physis [natureza] existe e subsiste”. Assim, “se a filosofia surgiu objetivando encontrar o princípio primeiro da realidade”, na mesma proporção, completam Frangiotti e Rosset, “o que caracterizou seu nascimento foi um problema metafísico, mesmo que a resposta a essa indagação tenha sido physis, isto é, um dos quatro elementos constitutivos da matéria” (Ibid., p.27). O que está se dizendo, como afirma Urbano Ziles, é que a “filosofia grega pensou a totalidade do real como cosmos” (Filosofia da Religião, p.8). O que isso significa? Entre outras coisas, significa que o “nascimento da filosofia marca a passagem do mito (mythón) ao logos [ordem], e tem como tema principal de reflexão a physis, que é a natureza”, daí o porquê de outras das designações dos filósofos pré-socráticos também serem as de “filósofos naturalistas” ou de “filósofos da natureza” (Metafísica Antiga e Medieval, p.27). Essa busca pela ordem e simetria do Universo que visava unificar o mundo material e desvendar o “código oculto da Natureza”, segundo Marcelo Gleiser, perdurou por milênios e inspira até hoje as famosas “teorias da unificação”. Ele mesmo fora um “unificador” em busca da “Teoria de Tudo” ou “Teoria Final”, crente de que “quanto mais profunda e abrangente a descrição da Natureza, maior o seu nível de simetria matemática” (Criação imperfeita, p.14). Gleiser reconhece que “a ideia de simetria sempre foi e continua sendo uma ferramenta essencial nas ciências físicas. O problema” completa o autor, “começa quando a ferramenta é transformada em dogma” (Ibid.). Apesar de constantemente falar-se da revolução copernicana e do modelo heliocêntrico, sabe-se, porém, que não houve um melhor ajustamento de sua teoria por influência de Pitágoras e Platão, ou seja, “apesar da importância da precisão e do embasamento físico, sua maior motivação era obedecer ao ideal platônico de uma ordem cósmica: Copérnico retornou à sugestão de Platão, de que os movimentos celestes, sendo criação de uma entidade divina inteligente (que o filósofo chamou de ‘Demiurgo’), só poderiam ser baseados em círculos, a mais perfeita das formas” (Ibid., p.54).

 

Uma forma geométrica ideal foi suficiente para emperrar a compreensão do correto funcionamento da mecânica orbital, isto é, o compromisso idealista de Copérnico o impediu de ver o que Johannes Kepler, quase um século depois provou: “as órbitas planetárias eram elípticas e não circulares” (Ibid., p.65). Assim, fica claro entender o porquê de Marcelo Gleiser “reconhecer que não é tanto a simetria, mas a presença de assimetria a responsável por algumas das propriedades básicas da Natureza” (Ibid., p.15). Falando acerca da busca de novas leis e abordando o mesmo assunto que Gleiser, Feynman diz que apesar de as órbitas dos planetas não serem circulares e sim elípticas, elas parecem ser quase simétricas. Por quê? “Por causa do longo e complicado efeito da fricção das marés — uma ideia bastante complicada. É possível que a natureza seja, no fim das contas, completamente assimétrica, mas que nas complexidades do mundo real ela acabe parecendo simétrica; assim as elipses se tornam quase círculos” (Sobre as leis da física, p.174). Não obstante sua argumentação, Feynman adverte que tal raciocínio é apenas “outra possibilidade, mas ninguém sabe, são hipóteses” (Ibid.). O próprio Planck diz que quando os “grandes gênios das ciências exatas propuseram suas ideias ao mundo científico — quando Nicolau Copérnico tirou a Terra da posição central do mundo, quando Johannes Kepler formulou as leis que levam seu nome, quando Isaac Newton descobriu a lei da gravitação universal, quando Chistiaan Huygens propôs a hipótese da natureza ondulatória da luz, quando Michael Faraday enunciou os fundamentos da eletrodinâmica e assim por diante —, as preocupações econômicas foram os últimos motivos que levaram esses homens a travar duras batalhas contra as ideias tradicionais e as autoridades de seu tempo. O que lhes dava coragem era a fé na conformidade de suas concepções do Universo com a realidade, e essa fé se apoiava em bases estéticas ou religiosas. É um fato que não pode ser contestado” (Autobiografia científica e outros ensaios, p.87). Diferentemente, em uma conferência em 1913, Planck afirma que vendo “de certa distância, como de um observatório elevado, o conjunto da física teórica moderna dá a impressão de caos, em vez de nos trazer um sentimento tranquilo de segurança como o que tínhamos com o conjunto de especulações do período anterior, chamado clássico” (Ibid., p.89). Uma década depois, em outra conferência, nessa ocasião na Academia Prussiana de Ciências, Planck diz que a “hipótese dos quanta perturbou recentemente o harmonioso sistema da física, e ainda hoje é imprevisível a exata influência que o desenvolvimento dessa hipótese terá sobre a concepção das leis físicas fundamentais” (Ibid., p.154).

 

Os argumentos apresentados podem constituir uma grande decepção para quem acredita piamente que há uma “conexão natural” entre nossa mente e a forma como agem as leis de funcionamento da mecânica do universo (esse, inclusive, é um dos “argumentos cosmológicos” defendidos pelo físico teórico e sacerdote anglicano John Polkinghorne, para “evidenciar” a existência de Deus, conforme ele disserta no primeiro capítulo da obra Grandes Questões da Ciência). Assim, se você está perplexo, não se preocupe, pois como disse Heisenberg citando Niels, “quem não fica chocado ao entrar em contato com a teoria quântica pela primeira vez não pode tê-la compreendido” (A parte e o todo, pp.239-240). A despeito disso, segundo Planck, “não houve nenhuma revolução tão brusca nas ideias desde os tempos de Newton e de Galileu” (Autobiografia científica e outros ensaios, p.205). Isso porque, segundo ele, o “impulso inicial que deu origem a esse vasto movimento está no extraordinário aperfeiçoamento dos métodos de medida, aperfeiçoamento estreitamente ligado ao progresso da técnica, que permitiu a descoberta de fatos novos e obrigou a rever teorias existentes. Duas grandes novas ideias contribuem muito para dar o tom à física nova: de um lado, a teoria da relatividade e, de outro, a teoria dos quanta. Cada uma contribuiu para uma fecunda revolução das ideias, embora tenham permanecido estranhas uma à outra e, até certo ponto, opostas” (Ibid., pp.205-206). A hipótese dos quanta trouxe uma revolução tão intensa que nem mesmo com a teoria da relatividade sentiu-se tamanho impacto. Isto é, apesar de se falar de uma nova física caracterizada pela teoria einsteiniana, de acordo com Planck, a relatividade poderia ser tranquilamente introduzida na física clássica, pois “em certa medida ela foi o seu coroamento por ter unificado, numa síntese superior, as noções de espaço e de tempo, de energia e de gravitação” (Ibid., p.208). Para Planck tal “síntese é tão perfeita que, graças a ela, foi possível dar às leis da conservação da energia e da quantidade de movimento formas perfeitamente simétricas, considerando essas duas leis como duas consequências equivalentes do princípio da mínima ação, que se tornou a lei mais geral da física. Esse princípio envolve tanto o domínio da mecânica como o da eletrodinâmica” (Ibid.). Já em relação à hipótese dos quanta, Planck diz que esta “forma o contraste mais aparente com essa maravilhosa harmonia”, ou seja, ela oferece a “impressão de um explosivo ameaçador que veio de fora para dentro do edifício da física” e a “prova inquietante de sua força” é que já é possível perceber “que uma grande fenda atravessa o edifício de alto a baixo” (Ibid.). A magnitude do abalo na física clássica se dá porque, diferentemente da teoria da relatividade, critica Planck, a “hipótese dos quanta não nasceu de repente em estado adulto”, ou seja, “não se apresentou já de início como um sistema de ideias simples e bem coerente, destinado a trazer a certas leis já conhecidas da física modificações muito profundas em princípio, embora insignificantes na prática, na maioria dos casos” (Ibid., pp.208-209).

 

Para se ter uma noção do quanto a segunda ideia modificou as bases da física clássica, enquanto os grandes físicos elaboraram suas ideias partindo do princípio de uma racionalidade do Universo, segundo Planck, a hipótese dos quanta “surgiu num domínio bem especial da física — a teoria do calor radiante —, como o único meio de salvação. Mais tarde, problemas diferentes, como o efeito fotoelétrico, o calor específico, a ionização, as reações químicas, tornaram-se às vezes muito simples e bem mais fáceis de resolver admitindo-se a hipótese dos quanta” (Ibid., p.209). “Assim”, continua Planck, “essa hipótese logo deixou de ser um simples instrumento de trabalho para tornar-se um novo princípio fundamental, encontrando aplicação sempre que tratamos de fenômenos muito pequenos e muito rápidos” (Ibid.). A crítica planckiana torna-se mais aguda nesse momento: “Infelizmente, a hipótese dos quanta não se contenta em contradizer ideias antigas, o que seria relativamente suportável. Cada vez mais ela contradiz os postulados fundamentais da física clássica”, mas, completa Planck, “não se trata, portanto, de uma simples modificação, como no caso da teoria da relatividade, mas de uma verdadeira subversão das ideias” (Ibid.). É possível que alguém apressadamente acredite que o grande físico alemão estava apenas interessado em desconstruir as ideias cristalizadas da física clássica como se fosse um capricho pessoal. O que ele queria, na verdade, era trazer luz a alguns cantos ainda obscuros da ciência. Ciente ele estava de que quando isso acontecesse, parte do edifício da física clássica ruiria sob os golpes da teoria dos quanta, porém, uma ela seria substituída por uma construção mais perfeita e mais sólida (Ibid., pp.214-215). Planck não tinha dúvidas, “a física, considerada pela geração anterior como um dos mais velhos e mais sólidos conhecimentos humanos, entrou em um período de agitação revolucionária que promete ser um dos mais interessantes da história” (Ibid., p.215). Longe de ser algo ruim, sua satisfação vinha do fato de que assim que fossem “resolvidas as causas do embaraço atual ficar[ia] evidente que, além de contribuir para descobrir fenômenos novos, novas pistas terão sido abertas para explorar mistérios da própria teoria do conhecimento” (Ibid.). De fato, talvez sem se aperceber em que medida, a teoria dos quantarevolucionou até mesmo a forma de encarar a percepção, demonstrando a impossibilidade de exaurir um problema, mesmo na perspectiva das ciências exatas e do exercício de um positivismo puro, pois o “pensamento e a pesquisa científica são partes integrantes da vida psicológica humana” (Ibid., p.114). Isso significa que “se o objeto da pesquisa for idêntico ao sujeito que pensa e que procura, este último entra num estado de transformação perpétua à medida que o conhecimento avança” (Ibid.).

 

Planck conseguiu mostrar que não passa de uma ilusão a busca de uma resposta final absoluta. “Na natureza”, diz o físico alemão, “tudo o que pode ser testado por medidas tem uma particularidade: o resultado dessas medidas nunca pode ser expresso por um número bem definido, pois sempre há causas de erro que acarretam certa indeterminação” (Ibid., p.202). Em termos mais diretos, “medida alguma permitirá saber se uma lei natural possui exatidão absoluta ou é apenas aproximada. Por outro lado, não existe teoria do conhecimento que nos permita chegar a um resultado mais satisfatório. Como já notamos, não estamos nem mesmo em condições de provar que há leis naturais; como então poderíamos demonstrar que essas leis têm valor absoluto?” (Ibid.). Por esse reconhecimento, torna-se mais claro entender o que o físico alemão quis dizer ao falar que “passou o tempo em que a filosofia e as ciências positivas se olhavam com desconfiança, como estranhas” (Ibid., p.215). Para ele, estava claro que, “de um lado, os filósofos perceberam que não lhes cabe traçar a linha de conduta dos cientistas, seja para indicar os objetivos que devem buscar, seja para propor os métodos a utilizar; por outro lado, os cientistas compreenderam perfeitamente que o ponto de partida de suas pesquisas não está apenas nas percepções sensíveis e que certa dose de metafísica é indispensável até mesmo para as ciências positivas. A antiga verdade, que na física moderna destaca com evidência, é que há realidades independentes de nossas sensações e há problemas e assuntos controversos em que essas realidades valem mais que os maiores tesouros obtidos do Universo tal como nossos sentidos o percebem” (Ibid.). Uma vez que “a relação de incerteza [Unsicherheitsrelation], descoberta e formulada por Heinsenberg, constitui um traço característico da física quântica” (Ibid., p.48), questiona retoricamente Planck: “Quem pode garantir que um conceito, ao qual atribuímos hoje um caráter absoluto, não será mais tarde considerado relativo, colocando-se num novo ponto de vista e cedendo lugar a outro absoluto de caráter mais elevado?” (Ibid., p.186). Apesar de previsível, vale a pena verificar seu raciocínio que emoldura a resposta: “A essa pergunta só há uma resposta: de acordo com tudo que sabemos por nós mesmos e o que aprendemos, ninguém pode nos dar essa certeza. E mais: jamais conseguiremos abraçar verdadeiramente o absoluto. Este é para nós um objetivo ideal; nós o temos sempre diante dos olhos, mas nunca o atingiremos. É uma ideia triste, mas com a qual temos de nos conformar. Somos como o alpinista que sobe uma encosta desconhecida; ele nunca tem certeza se, por trás do cume para o qual está subindo com tanto esforço, vai aparecer um cume mais alto ainda. Seu consolo, como o nosso, é dizer que segue em frente, subindo cada vez mais para atingir o objetivo tão desejado, prosseguir a caminhada para chegar o mais próximo possível desse objetivo, tarefa própria e incessante de cada ciência” (Ibid., pp.186-187).

 

 Planck mostrou que não era mais possível acreditar que a razão pode solucionar todas as questões. Tornara-se impossível crer que a realidade em sua completude ou que todos os fenômenos pudessem ser açambarcados por “razão pura” baseada no cartesianismo ou no positivismo lógico. A esse respeito é interessante o comentário do filósofo esloveno contemporâneo, Slavoj �i�ek, que diz: “A passagem epistemológica da física clássica para a teoria da relatividade não significou que essa mudança em nosso conhecimento foi correlata a uma mudança na própria natureza, ou que na época de Newton a própria natureza era newtoniana e essas leis mudaram misteriosamente com a chegada de Einstein — nesse nível, claramente, o que mudou foi nosso conhecimento da natureza, não a natureza. Mas isso não é tudo: existe, não obstante, um nível em que a ruptura epistemológica da física moderna deve ser correlacionada à mudança ontológica — o nível não do conhecimento, mas da verdade como posição subjetiva a partir da qual o conhecimento é gerado” (Menos que nada, p.541). Aqui é oportuno alinhar-se a Planck quando este, citando o filósofo Gottfried Ephraim Lessing, diz que “‘Não é a posse da verdade que faz o cientista feliz, é o esforço que o leva no sentido do êxito’” (Ibid., p.187). Considere, por exemplo, um texto em que Feynman apresenta uma listagem de partículas físicas, e diz que o “fato de termos encontrado todas essas partículas não nos diz nada, exceto que nosso conhecimento é incompleto” (Sobre as leis da física, p.170). Assim, quando Planck fala sobre o avanço científico representado na criação de “mecanismos de aferição”, demonstra que o “quantum elementar de ação ergue uma barreira objetiva que limita a eficácia dos aparelhos de medida utilizáveis nas ciências físicas” (Autobiografia científica e outros ensaios, p.54). “Por conseguinte”, completa, “o progresso desejado só vai acentuar ainda mais essa barreira” (Ibid.). Quanto mais se descobrir, mais aumentará a sensação de impotência e de falta de saber! E este é claramente o temor dos neopositivistas que insistem em negar as impossibilidades da ciência e teimam em reafirmar a necessidade de uma volta da sociedade a ter fé na razão, ou melhor, no racionalismo. Tal temor ficou expresso no último tópico do texto de Lawrence Otto (amplamente mencionado no artigo anterior), quando este se concentrou em criticar os insights provenientes da antropologia cultural e da teoria da relatividade, dizendo em seu texto "O problema com a ciência americana", na edição de dezembro último da Scientific American Brasil, que o conhecimento só pode ser válido se ele estiver “fundamentado em observações do mundo físico” (p.67). Otto diz que o apelo dos que ele chama de “pós-modernistas”, em afirmar que “a verdade [científica] é relativa e sujeita às suposições e preconceitos do observador”, equipara “falsamente conhecimento e opinião” (Ibid.). Com essa atitude, o jornalista demonstra ter o mesmo medo dos cientistas: Uma vez que a sociedade perceba que a ciência não tem todas as respostas e que nem mesmo a razão é uma capacidade humana infalível, não cabe a ela garantir nada, nem acerca do que é possível de se testar, que dirá daquilo que está longe ou fora do raio de ação do método científico.

fonte cpad news

fonte www.avivamentonosul21.comunidades.net